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terça-feira, 6 de setembro de 2016

PREFACIO DA "HISTÓRIA DE O". BELÍSSIMO!

PREFÁCIO DA HISTÓRIA DE O


PREFÁCIO - A FELICIDADE NA ESCRAVIDÃO 

Uma revolta em Barbados Uma singular revolta ensangüentou, no correr do ano de mil oitocentos e trinta e oito, a tranqüila ilha de Barbados. Cerca de duzentos negros, tanto homens como mulheres e todos recentemente promovidos à liberdade pelos Decretos de março, vieram uma manhã pedir ao seu antigo senhor, um certo Glenelg, que os retomasse como escravos. Foi feita a leitura do caderno de queixas, redigido por um pastor anabatista que os acompanhava. Em seguida, engajou-se a discussão. Mas Glenelg fosse por timidez, por escrúpulos ou simplesmente por medo das leis, recusou-se a se deixar convencer. Por isso, a princípio foi gentilmente empurrado, e depois massacrado com toda a sua família pelos negros que nesta mesma noite voltaram às suas cabanas, às suas tagarelices e aos seus trabalhos e rituais de costume. O caso pôde ser rapidamente abafado graças às diligências do Governador Mac Gregor , e a Libertação seguiu seu curso. Quanto ao caderno de queixas, nunca mais foi encontrado. Às vezes penso neste caderno. É provável que, ao lado das justas queixas referentes à organização das casas de trabalho (workhouse), à substituição da prisão pelo chicote e à proibição feita aos “aprendizes” _ como eram chamados os novos trabalhadores livres _ de ficarem doentes, contivesse pelo menos o esboço de uma apologia da escravidão: como, por exemplo, a observação de que as únicas liberdades às quais somos sensíveis são aquelas que jogam o outro numa servidão equivalente. 
Não se encontra um homem que se alegre apenas por respirar livremente. Se, por exemplo, obtenho o direito de tocar alegremente o meu banjo até as duas horas da manhã, meu vizinho perde a liberdade de não me ouvir tocando banjo até as duas da manhã. Se consigo chegar a não fazer nada, meu vizinho deverá trabalhar por dois. E , aliás , como se sabe, uma paixão incondicional pela liberdade certamente provocará no mundo, e bem depressa, conflitos e guerras não menos incondicionais. Acrescente-se que o escravo estando destinado, graças à Dialética, a tornar-se por sua vez senhor, estaríamos sem dúvida errados em querer precipitar as leis da natureza. Acrescente-se, enfim, que não deixa de haver grandeza e inclusive alegria em abandonar-se à vontade de um outro (como acontece com os apaixonados e os místicos) e em ver-se, enfim! aliviado de seus prazeres, interesses e complexos pessoais. Em resumo, este pequeno caderno representaria hoje, mais ainda do que há cento e vinte anos, uma heresia: um livro perigoso. É de uma outra espécie de livros perigosos que se trata aqui; precisamente, dos eróticos. Decisivo como uma carta Aliás, por que são chamados perigosos? Isso é no mínimo imprudente, pois como no sentimos geralmente corajosos, parecem convidar-nos a lê-los e a nos expormos ao perigo. E não é sem motivo que as Sociedades de Geografia aconselham aos seus membros que nos relatórios de viagens não insistam sobre os perigos passados. Não se trata de modéstia, é para não tentar ninguém (como se vê pela facilidade das guerras). Mas que perigos são esses? Há um pelo menos que da minha posição posso perceber muito bem. É um perigo modesto. A História de O evidentemente é um desses livros que marcam seu leitor _ não o deixando, sem tê-lo antes transformado parcial ou completamente e que, curiosamente, misturam-se com a influência que exercem transformando-se por sua vez. 
Após alguns anos, não são mais os mesmos livros, de forma que as primeiras críticas tornam-se logo um pouco simplórias. Mas não importa, um crítico nunca deve hesitar diante do ridículo. O mais simples nesse caso é confessar que não sou muito competente. Vou percorrendo estranhamente a história de O, como se fossem uns contos de fadas _ todos sabem que os contos de fadas são os romances eróticos das crianças _ como nesses castelos feéricos que parecem completamente abandonados , mas onde, entretanto, as poltronas com seus couros, os tamboretes e os leitos de colunas não têm um grão de poeira e onde já encontramos as chibatas e os chicotes; eles aí estão, se posso dizer assim, como se estar aí fosse próprio de sua natureza. Não há suspeita de ferrugem nas correntes, nem de umidade nos azulejos de todas as cores. Se há uma palavra que imediatamente vem ao meu espírito quando penso em O é a palavra “decência”. É uma palavra que seria muito difícil justificar. Passemos. E como este vento que corre sem parar, que atravessa todos os cômodos, também sopra em O algum espírito, sempre puro e violento, sem descanso e sem mistura. É um espírito decisivo ao qual nada atrapalha: nem os suspiros em meio aos horrores, nem o êxtase em meio à náusea. E tenho que confessar ainda que meu gosto em geral vai para outro lado: gosto das obras em que o autor hesita; em que mostra, por uma certa dificuldade, que o assunto inicialmente o intimidou; quando pensa que talvez nunca conseguisse dominá-lo completamente. Mas a História de O é conduzida do início ao fim, como uma ação de impacto. Faz pensar mais num discurso do que numa simples efusão; numa carta, mais do que num diário íntimo. Mas uma carta endereçada a quem? O discurso, a quem quer convencer? E a quem perguntar isso? Nem mesmo sei quem você é. Que é uma mulher, não tenho dúvidas. Não tanto pelos detalhes que tanto lhe agradam dos vestidos de cetim verde, das presilhas e das saias tantas vezes levantadas, “como um cacho de cabelos preso por um grampo”. Mas eis por que: no dia em que René a entrega a novos suplícios, O guarda suficiente presença de espírito para observar que os chinelos de seu amante estão gastos e que será necessário comprar outros. E é isto que me parece quase inimaginável. É isto que um homem nunca teria encontrado, ou que, em todo o caso, nunca teria ousado dizer. E , no entanto O expressa, à sua maneira, um ideal viril; viril, ou pelo menos masculino. Finalmente uma mulher que confessa; mas que confessa o quê? Aquilo que as mulheres em todos os tempos se proibiram (mas nunca mais do que hoje), e que os homens de todos os tempos têm lhes solicitado: que não deixem de obedecer ao seu sangue; quando nelas tudo é sexo, até mesmo o espírito. Que se deveria constantemente alimentá-las, lavá-las, Que tudo o que necessitam é de um bom senhor, que , entretanto desconfie de sua bondade: pois para se fazerem amar por outros, são capazes de usar toda a animação, a alegria e a naturalidade que devem à nossa ternura, desde o momento em que a declaramos. Enfim, que se deve levar um chicote quando se vai ao seu encontro. Poucos são os homens que não sonharam possuir uma Justine. Mas nenhuma mulher, que eu saiba, tinha ainda desejado ser Justine. Em todo caso, não em voz alta, com esta altivez do gemido e das lágrimas, com esta violência conquistadora, com esta avidez pelo sofrimento e com esta vontade feita de uma tensão que leva ao dilaceramento e à desintegração. Mulher talvez, mas que tem algo de cavalheiro e de cruzado, como se possuísse as duas naturezas, ou como se o destinatário da carta estivesse a cada instante tão presente que lhe emprestasse os seus gostos e a sua voz. Mas que mulher é essa e quem é você? De qualquer forma, a História de O vem de longe. Nela experimento primeiro este repouso, como nesses espaços que surgem em uma narrativa que durante muito tempo foi carregada por seu autor, de lhe ser familiar. Quem é Pauline Reagé? Será uma simples sonhadora como outras? (Basta escutar seu coração, dizem-me: é um coração que nada pára). Ou é uma dama que teve essa experiência, que passou por isso e que se admira de que uma aventura que tinha começado tão bem _ ou pelo menos tão gravemente, na ascese e na punição _ acabe tão mal, numa satisfação suspeita? pois afinal, e nisto estamos de acordo, O permanece numa espécie de prisão domiciliar onde o amor a fez entrar; permanece aí e não se sente tão mal assim.

(CONTINUA)

O LIVRO COMPLETO ESTÁ NA BIBLIOTECA.

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